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O quebra-cabeças sem peças

Publicada em 2016-09-19



Uma disputa com o grupo bósnio Prevent fez a Volkswagen parar no Brasil. A montadora, agora, acusa o fornecedor de travar intencionalmente as negociações. Até o momento, empresa deixou de faturar R$ 7,2 bilhões.

O silêncio domina cada metro quadrado da fábrica instalada no quilômetro 23,5 da rodovia Anchieta. Um dos símbolos da vocação industrial do ABC paulista, acostumada ao vaivém diário de milhares de funcionários, a linha de produção está praticamente deserta. Inaugurada em 1959, em São Bernardo do Campo, a primeira unidade fabril da Volkswagen no País não produz um único veículo há um mês. E não se trata de uma paralisação motivada por greve ou férias coletivas. Por trás da interrupção, está uma briga de cachorros grandes. De um lado, a empresa alemã, um dos pesos pesados do setor, segunda maior montadora do Brasil, com 290 mil carros vendidos em 2015 e um faturamento estimado em R$ 17 bilhões.

No outro canto do ringue, o até pouco tempo desconhecido Prevent, grupo bósnio de autopeças, que fatura € 700 milhões e se autodenomina um ícone da resistência ao poder das gigantes automobilísticas. A desavença veio à tona no Brasil no fim de agosto, quando a Volkswagen rescindiu o contrato com a Prevent e obteve uma liminar para recuperar equipamentos que estavam instalados nas fábricas da parceira, em regime de comodato. Mas o rompimento não é tão simples como se pensa. Para trocar de fornecedor na indústria automotiva, não basta apenas virar a chave.

E a dependência da Volkswagen em relação ao Prevent também é grande. De 2012 a 2014, o grupo bósnio adquiriu sete companhias no País, entre elas, Mardel, Tower, Fameq e Keiper, quase todas fornecedoras da Volks. Parceira da Volkswagen desde 1976, a Keiper está na origem do entrevero. A montadora alega que vinha sofrendo com suspensões sistemáticas na entrega de peças por parte da empresa, sua única fornecedora de bancos para modelos como Gol, Fox e Up no Brasil. Segundo a companhia, os problemas começaram em março de 2015, logo após a compra da Keiper pelo Prevent.

“O descumprimento dos contratos não foi um mero desalinhamento comercial”, afirma André Senador, diretor de assuntos corporativos da Volkswagen. Ele ressalta que o Prevent foi inflexível nas negociações. “As interrupções eram sempre acompanhadas de exigências de aumento abusivo de preços e de pagamento injustificado de valores sem respaldo contratual.” Como consequência, a Volkswagen deixou de produzir 150 mil veículos desde o início do impasse. Levando-se em conta o preço médio de R$ 48 mil dos carros da marca, é possível estimar que a montadora deixou de faturar R$ 7,2 bilhões no período.

Nos bastidores, comenta-se que a montadora pagou R$ 230 milhões ao grupo Prevent nesse intervalo, em onze acordos comerciais, além do que estava estipulado inicialmente. O grupo Prevent nega que tenha usado seu papel estratégico na cadeia para pressionar a Volkswagen. “Nós compramos empresas para fortalecer nosso negócio, não para extorquir parceiros”, diz Marino Mantovani Neto, CEO do grupo no Brasil. “A Volkswagen não é nossa refém. Nós é que dependemos deles. Mas não podemos ser explorados.” O executivo observa que o Prevent vinha pleiteando um aumento de 25% nos valores acordados.

O pedido tinha como justificativa a defasagem dessas cifras, sob o impacto da crise e de fatores como o aumento de 30% no preço do aço. O executivo diz que, depois de investir R$ 60 milhões em aquisições, “a situação do Prevent no País era de estrangulamento”. Ele ressalta, no entanto, que a companhia cumpriu todos os acordos e que a montadora sempre protelou qualquer renegociação, o que motivou a suspensão do fornecimento. “Percebemos que eles estavam ganhando tempo para desenvolver novos fornecedores e nos substituir. Esse é o ponto”, diz.

“Eles só não tiveram competência para isso.” André Senador rebate: “Se houvesse, de fato, uma estratégia de ganhar tempo, não estaríamos com nossa produção paralisada em todas as fábricas desde o dia 15 de agosto”, afirma. Além de São Bernardo do Campo, a paralisação atingiu as unidades da empresa em Taubaté (SP), São Carlos (SP) e São José dos Pinhais (PR). “O nível de estresse que a Volkswagen atingiu com esse caso não tem paralelo na história da empresa”, diz um executivo do setor que preferiu não se identificar.

Ele destaca, porém, que a estratégia do grupo Prevent de comprar empresas essenciais no setor e reivindicar melhores condições a partir dessa relevância é uma prática comum em diversas indústrias. “O erro deles talvez tenha sido seguir esse caminho justamente em um momento difícil para toda a indústria automotiva no Brasil.” Mas nem sempre essa relação foi conflituosa. Fundador do Prevent, o empresário Nijaz Hastor, 65, tem boa parte de sua trajetória ligada à Volkswagen. Na década de 1970, ele iniciou sua carreira na Tvnornica Automobila Sarajevo (TAS), que fabricava modelos da marca alemã na Bósnia.

Já no começo dos anos 1990, mudou-se para Wolfsburg, cidade onde estreitou seus laços com a montadora, cuja sede fica no município. Em 1999, de volta à sua terra natal, Hastor fundou o Prevent para fornecer peças à parceira, que acabara de reativar sua fábrica no país. Desde então, o grupo bósnio investiu em sua expansão global, marcada por uma estratégia agressiva de aquisições. Os alvos envolvem empresas-chave na cadeia automotiva. Consequência ou não do imbróglio com a Volkswagen, o fato é que o Prevent está no centro de outras rusgas. Em maio, a Fiat chegou a suspender sua produção em Betim (MG), devido à interrupção de fornecimento pela Tower e pela Mardel, outras empresas do grupo bósnio.

Após uma liminar, a operação foi retomada. Procurada pela DINHEIRO, a Fiat afirmou que as entregas estão normalizadas desde então. Os problemas, no entanto, não se restringem às montadoras. O grupo está sendo processado por outras empresas da cadeia automotiva, especialmente aquelas batizadas no setor como fornecedoras de “primeiro tier”, que contratam os serviços de manufatura de companhias como o Prevent. Como parte de um contrato com a Honda, a G-KT do Brasil, por exemplo, fornecia moldes e maquinário para que a Mardel produzisse peças de reposição. Em junho, a empresa entrou com uma ação de busca e apreensão, dada a interrupção das entregas pela parceira.

“Só não atrasamos os pedidos para a Honda porque tínhamos estoque”, diz Luiz Carlos Branco, advogado da G-KT. Após duas buscas nas quais as máquinas não foram localizadas, a companhia estuda novas medidas para identificar o paradeiro dos ativos. Melhor sorte teve a Ma Automotive. A multinacional italiana conseguiu reaver equipamentos que estavam na fábrica da Mardel, em Ribeirão Pires, após a empresa não cumprir prazos acordados. “O ferramental estava avaliado em cerca de R$ 5 milhões”, diz Rafael Jacinto, advogado da Ma Automotive. Ao menos outros quatro casos similares motivaram ações de busca, apreensão e reintegração de posse.

Questionado pela DINHEIRO, o Prevent afirmou que todos os processos estão arquivados e que as ações estavam atreladas às empresas adquiridas. Segundo uma fonte do mercado, a Volkswagen também não conseguiu recuperar todo o seu maquinário junto à Keiper. “Isso deve atrasar a normalização da produção em no mínimo 60 dias.” A informação não é confirmada pelo Prevent e pela montadora. Na terça-feira, 20, a unidade da Anchieta reinicia sua fabricação. As demais linhas voltaram a operar na quinta-feira, 15. Desde as paralisações, cerca de 13 mil funcionários de chão de fábrica entraram em férias coletivas.

“O plano é acelerar a produção para um ritmo mensal superior a 50 mil carros entre outubro e novembro para repor os estoques”, diz André Senador. A montadora nomeou 10 fornecedores nessa nova etapa. “Mas a transferência do ferramental, sua instalação, validação e a curva de aceleração até que a empresa opere normalmente vai resultar, temporariamente, em perdas de produção.” Com 85% de seus negócios no País ligados à Volkswagen, o Prevent também tem o desafio da retomada de produção, de resgate da confiança no setor e, sobretudo, da busca de novos clientes. E não são poucos os percalços à frente.

Após faturar R$ 480 milhões em 2015, a projeção é fechar 2016 com uma receita de R$ 180 milhões. A empresa reduziu seu time de 1,6 mil funcionários para cerca de 200 profissionais. “Temos R$ 32 milhões em indenizações para pagar e há dois meses não faturamos nada”, diz Neto. No dia 23 de agosto, a companhia registrou um pedido de recuperação judicial da Fameq na 1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais que, em seguida, foi estendido às outras empresas do grupo. Para assegurar o pagamento das rescisões, o Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André e Mauá entrou com uma liminar na 3ª Vara do Trabalho de Mauá, pedindo o bloqueio de créditos que o grupo tem a receber da Volkswagen.

E também solicitou que os quatro mil bancos em estoque na Keiper sejam transferidos aos trabalhadores, para que eles possam revendê-los à montadora. “O valor dos créditos gira em torno de R$ 7 milhões”, diz Adilson Torres, diretor do sindicato. A Volkswagen reconheceu a dívida, mas ressaltou que, se os prejuízos causados pela Keiper forem contabilizados, não restaria qualquer valor pendente. Ao contrário, a montadora passaria a ser credora do grupo. A disputa está longe de ter um fim. “É uma briga de interesses”, diz Miguel Torres, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. “Mas, nessa guerra, os que realmente perderam e seguirão sendo prejudicados são os trabalhadores.”



Fonte: Isto É